sábado, 2 de junho de 2007

Passando a limpo - Maria Lúcia


É grande o privilégio de ser filha de um poeta, e, cito aqui, como forma de admiração e agradecimento. Uma das primeiras poesias de meu pai: os Mandamentos da Lei de Deus, onde ele, mesmo com sua pouca instrução teológica, expressa o seu entendimento.
Amar a Deus sobre todas as coisas”
A palavra amar é perfeita
Se ama bem a Jesus
Só ele é que é a luz;
O amor dele é sozinho
Só ele é o caminho
Da família bem unida.
A esposa é bem querida
Que vive de união
Deus só quer o coração
Ele é caminho, verdade e vida!
Não tomar seu santo nome em vão
Tomar seu santo nome em vão
Já não é pelo direito
Deus não fica satisfeito
Já vem do tempo de Adão
Deus lançou a maldição
Só por causa do pecado
Do jardim foi expulsado.
E eram tão inocentes
Foi por causa da serpente,
Diz nosso livro sagrado.
Guardar domingos e festas
Domingo é nossa obrigação
Celebrar a festa religiosa
Pra colher mais uma rosa
No jardim da criação
De todo seu coração
Fazer com Deus aliança
E não tirar da lembrança
O lindo mundo de amor
Onde não tem magoa e dor
Nós temos esta esperança.
Honrar pai e mãe
Honrar pai e mãe amada
Este é nosso direito
Jesus fica satisfeito
Com nossa mãe estimada
É por Deus abençoada
Quem zela os pais que tem
Os anjos dizem amem
A meu pai eu me humilho
Só é feliz o filho
Que estima os pais e quer bem.
Não matar
Diz o quinto não matar
O corpo e também a alma
E viver com muita calma
Que é pra Deus lhe ajudar
Com Jesus se reconciliar
E ser bom com seu irmão
Pedir a Ele o perdão
Ao nosso reto juiz
Para em tudo ser feliz
E ganhar a salvação.
Não pecar contra a castidade
Não pecar contra a castidade
E respeitar a inocência
Com calma e muita prudência
Isso é uma grande verdade
Respeitar a virgindade
Disse Jesus – eu ensinei
Em duas tábuas gravei
Conforme está aos seus pés
E foi entregue a Moisés
Confirmai a vossa lei.
Não furtar
Diz o sétimo não furtar
Roubando as coisas alheias
Com o sangue das próprias veias
O pecado vai pagar
A Deus pode confessar
Pra ganhar a salvação
Implorando o seu perdão
Ver se consegue a vitória
Pois só entra em sua glória
Os puros de coração.
Não levantar falso testemunho
No oitavo mandamento
Vem o falso testemunho
foi escrito pelo cunho
Do Antigo Testamento
O falso é muito violento
A falsidade não é luz
Veja como foi Jesus
Que Judas fez amizade
E depois da falsidade
Morreu cravado na cruz.
Não desejar a mulher do próximo
No nono se desejar
A mulher do próximo é pecado
Deus deixou bem gravado
E tinha Moisés para ensinar
E esta lei explicar
Pra todas as criaturas
Esta verdade segura
Com todos fez amizade
Deus lhe falou a verdade
Diz a Sagrada Escritura.
Não cobiçar as coisas alheias
As coisas alheias cobiçadas
É que nos faz muito mal
Na vida de um casal
Vida boa é invejada
Sua alma fica manchada
Acaba toda amizade
É uma ilegalidade
E não tem mais um amigo
Não merece este castigo
Lá onde tem a Verdade.
E foi assim poetizando que meu pai foi ensinando o que ia ouvindo das leituras de minha mãe, e o que ia sentindo diante das realidades que as circunstâncias iam oferecendo.
Quando paro rebuscando em minha mente estas lembranças, revivo cada detalhe: mamãe que sempre recitava poesias dos grandes autores da literatura, mesmo sem conhecer a importância deles. E eu a ouvia declamar com voz melancólica, nas manhãs mais chuvosas (ela gostava dos dias de chuva): “Ai que saudade que tenho da aurora da minha vida / da minha infância querida...”
Depois com meus estudos pude ver a sensibilidade que ela tinha e o gosto para aprender os mais lindos poemas. Lembro das idas e vindas do papai, e às vezes de minha mãe, ao trabalho da agricultura de sobrevivência; as dificuldades do dia a dia que, algumas vezes, ele cantava em rima num tom de humor e esperanças, como na música “Utopia” do Padre Zezinho, que retrata bem estes momentos em minha família. “...O importante não faltava, seu sorriso e seu olhar...”
Acredito que são estas realidades vividas em família, cada vez mais raras, que levam muitas pessoas hoje, a difundirem valores contrários aos ensinamentos modernos e aos apelos consumistas de uma mídia cada vez mais avançada tecnologicamente, mas cada vez mais pobre de verdades que conduzem o ser humano ao caminho do amor, da justiça e do perdão. O apelo é pela construção de um mundo onde não haja tanta desigualdade e contra valores propagados como doutrina, hoje absorvida, principalmente por jovens sem base familiar.
Meu pai era poeta, e eu aprendi a admirar os poetas. estes encontram espaço para a sua visão interior, em qualquer lugar e em qualquer momento ou situação histórica. num mundo que vive situações catastróficas, o poeta não lhe é indiferente, mas tira dali o mais puro sentimento, a mais simples ideia para driblar, talvez, seu inconformismo.
Foi assim que meu pai sentiu e escreveu a “enchente de 1974”, cujo acontecimento o levava a vivenciar a destruição da casa onde vivera desde os quatro anos de idade.


(…)
Casa velha abandonada
Onde lá eu me criei
Dias felizes passei
E hoje não vale nada
Vejo-a tão desprezada
Lembro a minha mocidade
Não existia maldade
Papai, mamãe tão contentes
E hoje meu peito sente
Recordação e saudade.
(…)
Este poema está contido, na integra, em seu livro, “Revelações de um Agricultor” como outros que pretendo citar. Neste ele expressa sua vivência em família, com sua avó e seus pais, os quais traziam consigo, as marcas do fervor da fé, no cotidiano de uma vida simples.

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