sexta-feira, 29 de julho de 2011

O sino que não dobra mais... - Paulo Roberlando

Quando menino, contanto não mais do que doze ou treze anos, era eu sacristão. Orgulho que cultivava na assiduidade com que me apresentava às missas dominicais, mas nada me dava mais contentamento do que tocar o sino. Quando da primeira chamada, Fabrício, corinha como eu, disputava comigo em debandada carreira da sacristia, quando recebíamos do Dery da Constancia, “chefe dos sacristãos” a ordem de tocar o sino. Corríamos feito doidos, entrecortando os bancos, serpenteando por entre as senhoras do Apostolado da Oração alvamente vestidas, chegando juntos a escada estreita do “côro”, onde Fabrício sempre perdia na subida. Eu era mais ágil, e por sê-lo, era o primeiro a pegar no badalo do sino e tocar a segunda chamada. Em minha satisfação e felicidade, me considerava o melhor entre os ajudantes da missa, no toque daquele som que para mim era mágico, sinfônico, onde lá de cima, era como se eu pudesse ver suas ondas espraiando-se pela cidade, indo longe, bem longe, no eco do chamado dos fiéis à celebração.
Nos dias em que morria alguém, sempre ficava de prontidão à porta do “Seu Bendito Inês” esperando que ele me chamasse pro toque do “sinal”, sempre ouvindo dele a recomendação: “Olha menino, foi gente grande que morreu, não foi criança, então não me vá tocar repique, é sinal!”. Ora, como seu eu não soubesse a diferenciação destas duas modalidades de anúncio fúnebre cristão, logo eu que era tão apaixonado pelo ofício de tocar o sino, repique era um som mais intermitente, não tão compassado e plangente como o sinal.
A cidade ainda não era tão grande, não tão barulhenta como nos dias de hoje, as pessoas não eram apressadas, todos ouviam o sinal, e todos sabiam que alguém havia finado. Claro que com esta função de bater o sino por vinte minutos, me rendia uns trocados que eu de imediato me dirigia depois a bodega do Seu Manoel Luís pra gastar com bananada e biscoito de maisena, na verdade, pouco me importava se ia receber ou não pelo mister, como muitas vezes não recebia... esquecimento da Dona Constancia... quando era ela quem recebia e acordava comigo o pagamento ao término do toque, o problema era receber depois, quando se tentava, ela dizia: “Menino não tem que pegar em dinheiro...”, na realidade, o que eu queria mesmo era badalar o sino.
Passado os anos, muitos anos, hoje homem feito. Semana Santa, estando em casa me preparando pra ir à missa do “Lava Pés”, como de costume, aguardo o sinal da primeira chamada, sim, pois gosto de ouvir a harmonia daquela sonoridade convidativa que vem de longe, de minha infância, de minha mocidade, e da agora minha maturidade me chamar, em compassos que parecem tocar o mais profundo de mim, minha alma... ouvir e sentir as suas ondas sonoras reverberando em minhas recordações e mais queridas saudades...
Qual foi minha surpresa, que não foi o bronze tinindo que ouvi desta feita, quer dizer, foi som de sino, mas não o meu sino, não a música da minha alma... o que eu ouvia era um alarido maquinal, estridente... Eram vários toques, de várias tonalidades, diferentes em volume, tão acentuado que mal dava pra distinguir se realmente eram sinos que ali estavam tocando. Meu primeiro ímpeto foi da janela de meu quarto, que dava pra ver a torre da matriz, procurar de onde estava vindo este alvoroto... e, a medida que o volume aumentava em forma intermitente, mais interrogações me tomavam: Onde conseguiram este campanário? Como tão rapidamente o instalaram?
Com estas e umas cem outras indagações me encaminhei à Igreja para a missa da Quinta-feira Santa, com uma ansiedade tamanha, que nem mesmo percebi o cumprimento do meu amigo Raimundinho,  ao mesmo me indagando sobre a novidade do sino... indiferente me aproximo do pátio, olho a torre, o velho sino estava lá, no seu mesmo lugar de tantas décadas... silencioso...
Na mesma procura, minuciosamente percorro toda torre na vã tentativa de saber de onde veio a chamada da missa em forma estranha ao que estava acostumado. Mas nada, nada identifico, tudo estava em seu lugar, e nada havia sido acrescentado a majestosa e bela torre.
Sentado na fileira de banco de costume, próximo ao altar lateral direito, de frente para a nave central, observei que a Igreja estava lotada, e destas tantas pessoas, acredito que muitas, muitas estavam com a mesma interrogação que me atormentava aquele instante.
Dezessete horas, confirmo no relógio, agora vai tocar a segunda chamada, penso... agora saberei de onde veio a novidade. E logo, em ensurdecedor volume, o chamado começa a ecoar pelo templo, admirando e assustando a todos os presentes. Se de longe era confundível, agora ali mesmo, de perto, a coisa era pior. Em decibéis insuportáveis, vários sons de sinos se intercalavam, sem ritmo, sem sinfonia, uma confusão sonora...
Ouvia-se um burburinho misturado aos toques absurdamente altos da chamada, condicionando tudo a uma verdadeira balbúrdia. E eu mais inquieto do que nunca, procurando ansiosamente saber de onde vinha. Em primeiro lance, percebi que era som mecânico, e, não me contendo levantei-me e transpus o altar-mor em direção a sacristia, indo diretamente ao sistema de distribuição sonora, e, ali, ali estava a resposta de toda a minha perturbação, um CD, todo aquele som pandemônico estava vindo de um CD. Era a modernidade e a praticidade substituindo o melodioso sino...
Finda a missa, no pátio, olho para a primeira janela, acima da porta central. E lá estava ele, quieto, silenciado, abandonado depois de tantos anos soando... foi ele que tocou para a missa de meu batizado, foi ele que tocou para a missa de minha primeira eucaristia, foi ele que tocou para a missa do meu crisma, foi ele que tocou parra a missa de meu casamento... reflito tristemente que não será ele a entoar o sinal de minha ida, como de tantos, plangetemente entoou...

Por: Paulo Roberlando da Silva Ribeiro
uma sexta-feira santa - 21/04/2011

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