terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Amor de Raiz - Orestes Albuquerque

AMOR DE RAIZ




Ele, rebento minguado
Parteira fez sentinela
Angu foi sua dieta
Olhos presos na panela
Criado como batata
Em beira de corrutela
Ausente de sobrenome
Entupido de mazelas

II
Ele, criança sonhada
Primeira maternidade
Filmado dentro do ventre
Pequena celebridade
Chegada com muita festa
Anúncios pela cidade
Protegido no silencio
Do vento, da claridade
III
Ele, brinca na areia
Do chão de terra batida
Sem roupa sem preconceito
Sem saber de outra vida
Sem brinquedo sem cuidados
Só a sina a ser cumprida
Vida lhe monta de espora
Vai lhe abrindo feridas
             IV
Ele, tem até mucama
Que não lhe deixa chorar
Se chora tem doce colo
Tem cantigas de ninar
Roupas finas delicadas
Mamadeira de manjar
Casa cheia de brinquedos
E a vida pra brincar
           

V
Ele, já carrega água
Já capina no roçado
Pés descalços nos espinhos
Ganhou calção de riscado
Menino de couro grosso
Parece determinado
Quando crescer quer comprar
Um chapéu e um machado
              VI
Ele, domingo no parque
Brincando de escorregar
Algodão doce e pipoca
Carrossel a lhe rodar
Nada lhe falta na vida
É só pedir pra babá
Quando crescer certamente
Nem sabe o que quer comprar
               VII
Ele, brinca do seu jeito
Subindo na goiabeira
Seu cavalo pau de lenha
Deixa todos na poeira
Pra ele é maravilhoso
Desabalada carreira
Não conhece nem inveja
Qualquer outra brincadeira
              VIII
Ele, tem tv no quarto
Notebook e celular
Seus carrinhos de brinquedos
Já não pega pra brincar
Não escuta o que lhe dizem
Já responde pra babá
Come da melhor goiaba
Que a goiabeira dá
    IX
Ele, falta na escola
Ajuda sua mãe na feira
A vida mais dura ainda
Lhe tirou da brincadeira
Com esse peso nas costas
Vai ter que subir ladeiras
É hora de separar
O vinho da mamadeira




X
Ele, tem tudo que quer
Mimado até o pescoço
As meninas da escola
Disputam no alvoroço
Quem vai fazer a lição
Entrar na casa do moço
Da fruta que ele come
O outro come o caroço
        XI
Destino lhe foi ingrato
Vai ter que suar dobrado
Quem nasce pra capoeira
Nunca passa de roçado
Tem que ser muito tinhoso
Destino jogar pro lado
Correr mundo procurando
Seu chapéu e seu machado
               XII
A pesar do alvoroço
Ele se comporta bem
Não esnoba não debocha
Mas sabe a força que tem
Sempre no final das contas
Escolhe a que lhe convém
Melhor aluna da classe
Melhor amiga também
               XIII
Parte pra cidade grande
Pra fugir do que tem feito
Naquela vida sofrida
Teria que dar um jeito
Sua mãe vive de reza
Coração ta no estreito
Noticia sempre pequena
Saudade fora do peito
                XIV
Apesar de bom garoto
Adolescente feliz
Se sente entediado
Não é a vida que quis
Bota mochila nas costas
Foge pra onde não diz
Seus pais caíram de quatro
Lendo recado de giz
             



XV
Trabalha de balconista
De pedreiro, de servente
De carteiro de vigia
De soldado de escrevente
Manda carta para a mãe
To aqui virando gente
Um dia você descansa
E vai sentar no batente           

 XVI
Andou por todos os lados
Levou pancadas da vida
Soube que sem o trabalho
Ninguém merece comida
Descobriu como é pequeno
Quando estava sem guarida
Entendeu que a família
Não tem porta de saída
XVII
Recebe carta de casa
Sua mãe caiu doente
Esgotada do trabalho
Da lida, do sol ardente
Sua barraca de feira
Sua alma, seu batente
Metade da sua vida
Se foi assim de repente
               XVIII
Voltou pra casa sem graça
Mochila toda rasgada
Roupa suja das andanças
Auto-estima arrebentada
Suas lágrimas mostraram
A saudade escancarada
Abraço de pai e mãe
Não carece dizer nada             

XIX
Sua mãe era valente
Nunca ficava parada
Agora sem o trabalho
Deve estar desesperada
Se ele larga o emprego
Não manda sua mesada
Que fazer com essa carta
Situação complicada
           



XX
Resolve voltar pra casa
Tesouro foi alvejado
Nada lhe vale tão caro
Seu sonho foi adiado
A saudade pula montes
O amor vira tornado
Chapéu quebrado na testa
Depois compra seu machado
             XXI
Os valores se confundem
Com os bens materiais
Um chapéu e um machado
Parecem coisas banais
Quem toma sol no iate
Acha graça do rapaz
Quem tem o sol de castigo
Sabe o calor que lhe faz
              XXII
O pote de água fria
É a sua geladeira
O pirão da sua mãe
É coisa de feiticeira
Vai casar com a Maria
Namoradinha da feira
Cuidará da sua mãe
Sua velha companheira
  XXIII
Raízes bem definidas
No rapaz da corrutela
Apesar da vida dura
Não aparenta seqüela
Abre mão do seu futuro
Tira a janta da goela
Egoísmo passa longe
Só não passa o amor dela!
  XXIV
O rapaz de pele fina
De gravata importada
Visita os pais mensalmente
Agora em nova morada
Leva presentes bonitos
Diz que não lhes falta nada
Quem gastou vida por ele
Passa as horas asilada
Não teve o amor de volta
Acabou interditada!!!

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